UM POUCO DE IRA
Tua presença antes tão esperada e
amada agora me ojeriza, não sei ao certo a razão mas o que deveria ser pelo
menos indiferente apresenta-se cheio de mal-estar ao mesmo tempo em que uma certa estranheza invade minha alma
assolada, como se uma nuvem carregada de
chuva aparecesse assim de repente em um dia ensolarado, uma certa escuridão
florejou abruptamente dentro do meu ser, eu olho e não o vejo mais, sua visão é
uma borra de café jogada num tapete branco e eu sinto vontade de tomar um café,
tua imagem ainda permanece ali parada e dizes coisas que nem escuto, meus pés
querem sair, meus olhos fixos só veem a mancha escura dentro do teu contorno,
minha mente delineia tantos pensamentos, todos desagradáveis e, por mais que eu
tente, só a negritude parece existir, embora eu saiba que houve momentos
extremamente apaixonantes e inesquecíveis, mas que já esqueci ou finjo a mim
mesma não lembrar, mais uma vez tento sair e não consigo, me sinto como pregada
ao chão e a cada instante uma nova penumbra vai
me invadindo, eu sei que não devia porém meu desejo interior clama tua
partida, agora sinto o cheiro delicioso do café passado vindo da cozinha e um
largo sorriso dentro de mim ri da ironia,
da comparação que minha alma fez há pouco, os sons dos carros que passam
me dão um frenesi, o barulho da motocicleta agora interrompe a sinfonia dos
automóveis, tudo parece ser mais importante do que tua presença, permaneço à
porta da casa, um degrau abaixo está a borra que me olha a buscar respostas que
não posso e também não quero dar, não sei se alguma pergunta ficou sem resposta
ou se tudo isso é um monólogo, mas ele continua ali, vejo a borra em forma de
gente, em pé diante e abaixo de mim, um gosto amargo se faz em minha boca, não
posso me mexer, afinal por quê? De leve o cheiro do perfume dele já se
misturando ao do café e um torpor me estremece, sinto raiva e quero fugir, não
posso, minha alma destruída, eu grito e choro aqui dentro, dane-se maldito, o
que queres mais de mim? Por que simplesmente não finges que nunca existi em tua
vida? Por que ainda vens me cobrar uma atenção quando tudo em mim te rejeita?
Assim que der, vou tomar um cafezinho, mas o que está acontecendo afinal? Vai,
diz alguma coisa, manda embora o desgraçado que tanto te magoou e foi magoado,
permaneço ali, estátua viva, tudo em mim exteriormente congelou, só aqui no meu
eu mais profundo uma revolução acontece
e eu sofro, minhas mãos começam a suar,
uma gota de suor rola no meu rosto ou será uma lágrima? Morra infeliz!
Por que me atormentas com tua falsa amizade? Está na moda, sermos civilizados,
mas não quero ser tua amiga e sim ser deletada de tua inútil vida, embora tu
penses que tua existência seja alguma coisa eu te digo “não vale nada”, és tão
efêmero quanto o aroma do café após
alguns minutos, passa logo, nada fica, nem lembrança, não me importa se me queres bem ou mal, não
ligo, só tua presença me incomoda, podes simplesmente partir? Não, seria fácil
demais, me enoja essa hipocrisia, amantes, amigos, danem-se! Eu te odeio e fim,
mas por que não fecho porta? que ideia mais louca, procuro nada demonstrar,
escondo todos os vendavais dentro de mim, meus olhos de novo na borra, um vento
agora desarruma seus ralos cabelos, nem bonito és, mas o que me atraiu nesse
homem? Inteligência mediana, que agora acho até medíocre, físico nada atlético, nenhum atrativo
especial, acho que a loucura havia se instalado em mim, enfim a pergunta
persiste “por que não fecho a porta?” essa inquietude e esse rumor que parece
infinito, então, pouco a pouco vou vendo metade do seu rosto desaparecer, ainda
vejo o olho direito interrogativo, diria até assustado, meia boca, em
seguida meio olho e nenhuma boca, agora
apenas um pequeno pedaço do contorno do lado direito do rosto e... nada mais, minha mão lentamente vai largando a
maçaneta, me dirijo até a cozinha, me sento e sirvo um café, um leve tremor
balança todo meu corpo, um pouco de ira se mistura ao sabor do líquido preto,
mas um gosto incomparável de alívio e prazer invade minha alma desbotada por
esses sentimentos contraditórios do antes e do depois, já não sei onde fim é o começo ou o fim, tudo parece ser
circular, como se auto alimentasse, tua vinda, teu esvanecimento, tudo parece
agora estar acertado dentro da incerteza das coisas nem sempre certas, só sei
que o valor de episódios não tangíveis muitas vezes são medidos dentro dos meus
próprios comedimentos incomensuráveis, agora olho para o chão e uma gota escura
do café espalhada no branco piso frio me lembra tua presença igualmente frígida
nesta manhã do mesmo modo gélida também dentro de mim, um certo alívio parece me
entorpecer, gostaria de te arrancar de mim assim como te tirei da minha visão
fechando pouco a pouco, quadro a quadro, até desaparecer por fim.
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