INUSITADO
Não
pensei que terminaria assim, eu te abandonando, te amando ainda, teu silêncio
que tanto me agradou foi o que causou nossa separação, olho pela janela do
avião, as nuvens parecem aqueles quadros de areia fina que quando colocados de
cabeça para baixo vão formando outras imagens, nunca as vi desse jeito, elas
pareciam chorar como eu, a negritude invadiu minha alma de tal forma que quase
não a vejo, somente a dor que sentia me lembrava que eu ainda estava viva,
antes de embarcar uma última ligação, peço-lhe que não me deixe partir, ainda
no aeroporto, nenhuma resposta, apenas um silêncio profundo e perturbador,
pisei o tudo em que acreditava, o orgulho deu passagem, implorei em vão, tua intransigência
era intransponível, há uma semana de nosso casamento e eu não o conhecia, em
frente um do outro separados pela medida do tampo da mesa da cozinha, eu recém
estava descobrindo o que se passava por detrás de todo aquele silêncio, por não
dizer nada em contrário pensei estarmos em sintonia, aquela tarde foi
aterradora, todas as palavras não ditas
foram então pronunciadas, um estranho surgiu diante de mim, e deste eu
não gostava, perguntei se ele era assim ou se por alguma obscura razão ele se
encontrava dessa forma, não, essa era a sua essência, estúpida e ciumenta, não
tive tempo de desgostar, foi tudo muito repentino, apesar de não amar esse
outro ser que agora se apresentava, não conseguia deixar de amar o outro que
habitara até bem pouco tempo atrás esse mesmo corpo, difícil arrancar todo o
sentimento, mesmo sabendo que o que eu sentia não era pela pessoa real,mas sim
por uma representação, uma estranheza se instaurou em mim, entreguei-lhe a
aliança e pedi que fizesse suas malas, levei-o até sua casa e virei as costas,
sei de todos os meus limites e da minha incapacidade de ceder, restava matar
agora todo o sentimento que em mim existia, a razão por um lado me dizia estar
certa, o coração por outro me corroia, pensamentos e sensações mesclavam-se com
um torpor estarrecedor, tinhas ciúmes de tudo, eu uma alma livre, não aceitava
correntes nem amarras, não sei fingir, sei apenas ser o que sou, ao meu lado
senta-se um homem com fones no ouvido, ainda bem não pode ouvir os lamentos de
minha alma, o avião decola, o seu som é mais suave que o estardalhaço dos meus
sentimentos, só podia estar chovendo, combina melhor com minha existência, e eu
que pensei haver encontrado o sol, debocho de mim, da minha falta de realidade,
agora também não poderia ser diferente, toda minha vida foi uma eterna
noite de chuva e de tempestades, a imbecilidade tomou conta de mim e eu
acreditei, acreditei que podia ser feliz e que podia agarrar a vida em minhas
mãos, ironicamente nunca cri que fosse possível, o amor faz tornar o prófugo em
concretude, idiotice minha, todos os que
amam são ignorantes, não sabem nada, pensam saber, somente eles podem ser
felizes pois desconhecem outros horizontes, essa falta de visão é o que lhes
permite sentirem-se satisfeitos e realizados, sou uma metamorfose, nunca
escondi, o amanhã comigo é sempre incerto, essa mutabilidade foi uma questão
mencionada, talvez a causa de todas as incertezas dele, um leve roçar do braço
do homem com fones no meu braço, viro e fito seus olhos negros e profundos, há
apenas um contorno do rosto, somente o olhar se destaca, ele parece ler minha alma, ficamos olhos nos
olhos por alguns segundos, um leve tremor me acode, desvio o olhar em direção à
janela, procuro ver novamente as nuvens em forma de areias finas, não consigo,
aqueles olhos ficaram impressos em minha retina, permaneço imóvel procurando
ver as nuvens, sinto de novo um pequeno toque em meu braço, finjo não sentir,
ele insiste, olho para ele, confusa com o gesto, seu rosto está bem próximo do
meu, posso sentir sua respiração, seus
lábios agora estão colados ao meus, destino implacável, não sei o que o atraiu,
não sei o que me atraiu, sem palavras, sem nomes e apresentações, beijávamo-nos
docemente como se fosse algo natural e usual , nenhum de nós dois falava, acho
que somente nossas almas trocaram informações, sei lá, talvez dois corações
machucados tenham se encontrado naquele voo, permanecemos calados, abraçados,
como se um apoiasse o outro, aterrissamos, peguei minha bagagem de mão, sai sem
olhar para ele, senti seu olhar me acompanhar, ao tomar o táxi vi que ele
estava ao meu lado, mas nada disse, abri a porta, entrei e parti, ainda trago
aqui dentro de mim aquele momento inusitado de minha vida e em minha retina
ainda estão impressos aqueles olhos negros de um desconhecido que me confortou
e me reanimou em uma dia de total negritude, não sei quem é, nem desejo
sabê-lo, só sei que naquele determinado tempo ele foi a minha completude, não
precisamos falar, apenas deixamos que as sensações nos dominassem e nos
fizessem felizes, quem sabe um dia o destino
nos coloque novamente juntos ou não, não importa, sei que naquele
momento fomos um para o outro tudo
aquilo que precisávamos, dois desconhecidos que por uma estranha razão se deixaram guiar pelos sentimentos que nenhuma
explicação lógica conseguiria explicá-los, mas que a essência humana em sua
total pureza, sem o pensamento do certo e do errado, permitiu fluir uma energia
ainda para mim totalmente inexplicável e singular, sei a partir de então que
sou capaz de abolir a racionalidade e ser apenas instintiva.
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