O VELHO BAÚ
Aquele velho baú me intrigava, sei que trazia dentro dele
quinquilharias talvez preciosas talvez tacanhas, ele ficava no sótão de uma
casa antiga que sempre aparecia em meus sonhos, repetidas vezes eu subia os
degraus de uma escada sádica e assustadora, parecia dizer que aquele baú sempre
me pertencera, mas que por alguma razão não me era permitido abri-lo, talvez,
pensei eu, fosse como a caixa de pandora, todos os meus medos mais profundos e alegrias
parcas fossem aflorar alguma coisa que dentro de mim adormecera e eu tinha
ouvido o sussurrar da casa me alertando do perigo incipiente que aquele objeto
prenunciava, eram talheres de prata imaginei, o momento chorava de angústia, lá
fora chovia também, eu quase chegando à metade da escada, logo, um pouco mais e
iria ver o baú, era sempre assim, ele aguardava silencioso e sinistro por mim,
olhei pela vidraça ao lado da escada e vi que eu estava justamente naquele
instante mais sombrio do dia, em que o sol em dias não chuvosos começa a dar
seu lugar à lua, hora silenciosa em que as mazelas da alma gritam por socorro
porque já não podem mais se calar. Por um instante, eu permaneci parada,
hesitante se devia ou não prosseguir, mas escutava o lamento do velho baú, em
agonia clamando por mim, subi mais um degrau, já não enxergava mais o lado de
fora, agora era a escuridão e o baú, ele sabia que eu teria que abri-lo, que
minha mão seria obrigada a executar a ação e ele então ficou ainda mais ansioso. Lembrei que quando
criança tivera um pequeno baú onde guardava meus bens mais queridos e as
esperanças mais desesperançadas, já conhecia o risco que representava aquele
objeto, tinha ao mesmo tempo medo e esperança e ele aguardava quietinho, como
que disfarçado, não podia me deixar tão aflita a ponto de não abri-lo, ele
nasceu para isso, era indispensável que eu o vasculhasse ou não estaria
cumprindo o seu papel nesse mundo supostamente tão ordenado e organizado em que
cada coisa ou pessoa teria o seu fim, era de sua casta, a mão humana tinha que
remexê-lo e eu sabia que essa mão me pertencia, fomos feitos um para o outro,
ninguém mais poderia possuí-lo além de mim e ele não tinha a mais ninguém
também, ele sentia o meu torpor e ele próprio o sentia, o velho baú pressentia minha chegada e eu o podia sentir
estremecido e afoito, certa estranheza me acode, não sei se quero chegar até
ele, uma mansidão agora parece me invadir, porém ouço lamentos da casa, ela
reivindica o baú só para ela, não quer que eu prossiga, de novo o torpor se
instala em mim, a casa e o baú têm a mesma idade, ambos são da mesma época e
talvez da própria natureza do tempo contido entre eles, percebo então que não
faço parte daquela história, mas o baú por algum motivo parece discordar da
casa e de mim, subo mais um degrau, mais alto o som das lamúrias dela e do chamamento dele, faltam
apenas dois degraus para eu encontrá-lo. Paro! Os pensamentos agora eclodem e
implodem, a confusão de sentimentos é tamanha que parece impossível agarrar
alguma ideia ou chegar a uma conclusão certa diante de tantas incertezas, a
fugacidade de minha existência difere da concretude do baú, embora por dentro
talvez ele seja mais efêmero do que eu, eu falo dele que não é apenas um baú e
sim uma soma de sustos e de inquietudes que assolam minha essência, tudo tem
que acabar, nada é para sempre, é a única certeza que tenho. Subo mais um
degrau, essa interminável escada carrega nela mesma todo o vácuo que nos une,
falta apenas um degrau e lá estará ele, o esvaziamento da minha existência
faz-se então mais presente, parece que sempre estive de passagem, meu encontro
com o baú não é uma entrada, mas uma saída de uma vida de inutilidades das
coisas cotidianas, e eu sofro, tenho
medo de me autodescobrir porque não conheço outra forma de lidar com a dor de
existir a não ser ignorar, ainda chove lá fora, ouço o barulho do céu chorando,
choro por dentro porque sei que é inevitável, afinal há muito que o baú me
espera e há muito anseio encontrá-lo, somente o medo me impediu até hoje, mas
enfim é o momento. Passei o último degrau e estou olhando para ele, mas não é
mais um baú, é toda uma existência repleta de quinquilharias tacanhas e também
preciosas que se veem duplicadas em um
enorme espelho que reflete toda a minha existência, ele que durante minha
estada sempre esteve ao meu lado, mesmo com a mediocridade de uma união
imaginária, abro o baú e vejo que não há nada, apenas um lugar e uma voz que me
chama, e eu sei que apenas esse chamamento é o que me resta, então fecho
lentamente os olhos e mergulho
serenamente para dentro do baú, em posição fetal, encerro a vida levando comigo
tudo o que eu e ele tínhamos vivido, o medo passou, outra mão talvez cerre de vez o baú, mas agora somos um só ser,
apenas uma efemeridade que esteve por aqui por um determinado tempo, clandestino
instante de felicidade absoluta reina entre nós, só o silêncio nos acompanha,
ser e coisa se fundem numa harmonia tranquila de quem nunca foi um ser e do que
nunca foi apenas uma coisa.
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