quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Olá:
Sejam bem-vindos, os 6 contos a seguir são de minha autoria. Gostaria de suas opiniões.
Abraços
Dilma
UM POUCO DE IRA


Tua presença antes tão esperada e amada agora me ojeriza, não sei ao certo a razão mas o que deveria ser pelo menos indiferente apresenta-se cheio de mal-estar ao mesmo tempo em que  uma certa estranheza invade minha alma assolada,  como se uma nuvem carregada de chuva aparecesse assim de repente em um dia ensolarado, uma certa escuridão florejou abruptamente dentro do meu ser, eu olho e não o vejo mais, sua visão é uma borra de café jogada num tapete branco e eu sinto vontade de tomar um café, tua imagem ainda permanece ali parada e dizes coisas que nem escuto, meus pés querem sair, meus olhos fixos só veem a mancha escura dentro do teu contorno, minha mente delineia tantos pensamentos, todos desagradáveis e, por mais que eu tente, só a negritude parece existir, embora eu saiba que houve momentos extremamente apaixonantes e inesquecíveis, mas que já esqueci ou finjo a mim mesma não lembrar, mais uma vez tento sair e não consigo, me sinto como pregada ao chão e a cada instante uma nova  penumbra vai  me invadindo, eu sei que não devia porém meu desejo interior clama tua partida, agora sinto o cheiro delicioso do café passado vindo da cozinha e um largo sorriso dentro de mim ri da ironia,   da comparação que minha alma fez há pouco, os sons dos carros que passam me dão um frenesi, o barulho da motocicleta agora interrompe a sinfonia dos automóveis, tudo parece ser mais importante do que tua presença, permaneço à porta da casa, um degrau abaixo está a borra que me olha a buscar respostas que não posso e também não quero dar, não sei se alguma pergunta ficou sem resposta ou se tudo isso é um monólogo, mas ele continua ali, vejo a borra em forma de gente, em pé diante e abaixo de mim, um gosto amargo se faz em minha boca, não posso me mexer, afinal por quê? De leve o cheiro do perfume dele já se misturando ao do café e um torpor me estremece, sinto raiva e quero fugir, não posso, minha alma destruída, eu grito e choro aqui dentro, dane-se maldito, o que queres mais de mim? Por que simplesmente não finges que nunca existi em tua vida? Por que ainda vens me cobrar uma atenção quando tudo em mim te rejeita? Assim que der, vou tomar um cafezinho, mas o que está acontecendo afinal? Vai, diz alguma coisa, manda embora o desgraçado que tanto te magoou e foi magoado, permaneço ali, estátua viva, tudo em mim exteriormente congelou, só aqui no meu eu  mais profundo uma revolução acontece e eu sofro, minhas mãos começam a suar,  uma gota de suor rola no meu rosto ou será uma lágrima? Morra infeliz! Por que me atormentas com tua falsa amizade? Está na moda, sermos civilizados, mas não quero ser tua amiga e sim ser deletada de tua inútil vida, embora tu penses que tua existência seja alguma coisa eu te digo “não vale nada”, és tão efêmero  quanto o aroma do café após alguns minutos, passa logo, nada fica, nem lembrança,  não me importa se me queres bem ou mal, não ligo, só tua presença me incomoda, podes simplesmente partir? Não, seria fácil demais, me enoja essa hipocrisia, amantes, amigos, danem-se! Eu te odeio e fim, mas por que não fecho porta? que ideia mais louca, procuro nada demonstrar, escondo todos os vendavais dentro de mim, meus olhos de novo na borra, um vento agora desarruma seus ralos cabelos, nem bonito és, mas o que me atraiu nesse homem? Inteligência mediana, que agora acho até medíocre,  físico nada atlético, nenhum atrativo especial, acho que a loucura havia se instalado em mim, enfim a pergunta persiste “por que não fecho a porta?” essa inquietude e esse rumor que parece infinito, então, pouco a pouco vou vendo metade do seu rosto desaparecer, ainda vejo o olho direito interrogativo, diria até assustado, meia boca, em seguida  meio olho e nenhuma boca, agora apenas um pequeno pedaço do contorno do lado direito do rosto e... nada  mais, minha mão lentamente vai largando a maçaneta, me dirijo até a cozinha, me sento e sirvo um café, um leve tremor balança todo meu corpo, um pouco de ira se mistura ao sabor do líquido preto, mas um gosto incomparável de alívio e prazer invade minha alma desbotada por esses sentimentos contraditórios do antes e do depois, já não sei onde  fim é o começo ou o fim, tudo parece ser circular, como se auto alimentasse, tua vinda, teu esvanecimento, tudo parece agora estar acertado dentro da incerteza das coisas nem sempre certas, só sei que o valor de episódios não tangíveis muitas vezes são medidos dentro dos meus próprios comedimentos incomensuráveis, agora olho para o chão e uma gota escura do café espalhada no branco piso frio me lembra tua presença igualmente frígida nesta manhã do mesmo modo gélida também dentro de mim, um certo alívio parece me entorpecer, gostaria de te arrancar de mim assim como te tirei da minha visão fechando pouco a pouco, quadro a quadro, até desaparecer por fim.
SILÊNCIO

O  silêncio provoca esse encontro comigo mesma, sem sons eu me vejo como se fosse pela primeira vez, é quando só eu existo e me sinto completa, os barulhos do cotidiano me dividem em inúmeros eus de tal forma que nem sei direito quem sou, máscaras multifacetadas encobrem-me, desdobram-me em múltiplas personalidades, muitas vezes sem elo entre elas; entretanto,no sepulcro da alma há uma delas, que além de não se ligar a nenhuma outra, sequer habita de fato em mim e o desdobramento torna-se ainda mais quantitativo, o interessante é que a cada falta de som uma nova forma aparece sem se relacionar também com nenhuma das anteriores, é nesse silêncio que me sinto plena, mesmo com tantas existências, ouso até dizer que me sinto um pouco feliz, o silêncio me divide e me defini, sei que tudo isso para a grande maioria são insignificâncias, a sobrevivência humana não fornece tempo para a reflexão sobre a existência humana, ela sequer é percebida, introspecção faz parte de mim e a falta de explicações não oriundas de fatos externos me abalam e me confundem, a noite chegou e com ela o momento crítico, após todos se acomodarem e findarem as tarefas da casa, uma avalanche de sentimentos me balança por inteira, momento epifânico que se dá na ausência de tudo, é na falta que eu existo, se é que posso usar “existir”, já que o termo pressupõe sentir-se viva e isso eu não sinto, falta-me o essencial da existência humana: uma única identidade, sobram-me tantas  identificações em determinados momentos, no íntimo nenhuma, apenas um vazio repleto de representações que podem ser retiradas com algum solvente vagabundo, não sei de fato o que sou, o que me sobra  ou o que me resta, sou uma desarrumada nesse mundo tão harmonicamente arranjado, foi o silêncio dele que me cativou, como ele não existia eu podia existir,eu não era fracionada e a sua falta de som finalmente me permitiu a plenitude de ser eu, sem máscaras, sem performances, apenas eu, escrevo com um aperto no peito, sei que há qualquer momento, o silêncio dele pode não me bastar e as outras personalidades aqui dentro adormecidas podem se revelar, sofro mesmo na felicidade porque um instante perigoso, não procurado nem desejado, pode trazer à tona todos esses habitantes que vivem dentro de mim e novamente a escuridão pode voltar e se instalar de vez em mim.


O VELHO BAÚ
Aquele velho baú me intrigava, sei que trazia dentro dele quinquilharias talvez preciosas talvez tacanhas, ele ficava no sótão de uma casa antiga que sempre aparecia em meus sonhos, repetidas vezes eu subia os degraus de uma escada sádica e assustadora, parecia dizer que aquele baú sempre me pertencera, mas que por alguma razão não me era permitido abri-lo, talvez, pensei eu, fosse como a caixa de pandora, todos os meus medos mais profundos e alegrias parcas fossem aflorar alguma coisa que dentro de mim adormecera e eu tinha ouvido o sussurrar da casa me alertando do perigo incipiente que aquele objeto prenunciava, eram talheres de prata imaginei, o momento chorava de angústia, lá fora chovia também, eu quase chegando à metade da escada, logo, um pouco mais e iria ver o baú, era sempre assim, ele aguardava silencioso e sinistro por mim, olhei pela vidraça ao lado da escada e vi que eu estava justamente naquele instante mais sombrio do dia, em que o sol em dias não chuvosos começa a dar seu lugar à lua, hora silenciosa em que as mazelas da alma gritam por socorro porque já não podem mais se calar. Por um instante, eu permaneci parada, hesitante se devia ou não prosseguir, mas escutava o lamento do velho baú, em agonia clamando por mim, subi mais um degrau, já não enxergava mais o lado de fora, agora era a escuridão e o baú, ele sabia que eu teria que abri-lo, que minha mão seria obrigada a executar a ação e ele então  ficou ainda mais ansioso. Lembrei que quando criança tivera um pequeno baú onde guardava meus bens mais queridos e as esperanças mais desesperançadas, já conhecia o risco que representava aquele objeto, tinha ao mesmo tempo medo e esperança e ele aguardava quietinho, como que disfarçado, não podia me deixar tão aflita a ponto de não abri-lo, ele nasceu para isso, era indispensável que eu o vasculhasse ou não estaria cumprindo o seu papel nesse mundo supostamente tão ordenado e organizado em que cada coisa ou pessoa teria o seu fim, era de sua casta, a mão humana tinha que remexê-lo e eu sabia que essa mão me pertencia, fomos feitos um para o outro, ninguém mais poderia possuí-lo além de mim e ele não tinha a mais ninguém também, ele sentia o meu torpor e ele próprio o sentia,            o velho baú pressentia minha chegada e eu o podia sentir estremecido e afoito, certa estranheza me acode, não sei se quero chegar até ele, uma mansidão agora parece me invadir, porém ouço lamentos da casa, ela reivindica o baú só para ela, não quer que eu prossiga, de novo o torpor se instala em mim, a casa e o baú têm a mesma idade, ambos são da mesma época e talvez da própria natureza do tempo contido entre eles, percebo então que não faço parte daquela história, mas o baú por algum motivo parece discordar da casa e de mim, subo mais um degrau, mais alto o som  das lamúrias dela e do chamamento dele, faltam apenas dois degraus para eu encontrá-lo. Paro! Os pensamentos agora eclodem e implodem, a confusão de sentimentos é tamanha que parece impossível agarrar alguma ideia ou chegar a uma conclusão certa diante de tantas incertezas, a fugacidade de minha existência difere da concretude do baú, embora por dentro talvez ele seja mais efêmero do que eu, eu falo dele que não é apenas um baú e sim uma soma de sustos e de inquietudes que assolam minha essência, tudo tem que acabar, nada é para sempre, é a única certeza que tenho. Subo mais um degrau, essa interminável escada carrega nela mesma todo o vácuo que nos une, falta apenas um degrau e lá estará ele, o esvaziamento da minha existência faz-se então mais presente, parece que sempre estive de passagem, meu encontro com o baú não é uma entrada, mas uma saída de uma vida de inutilidades das coisas cotidianas,  e eu sofro, tenho medo de me autodescobrir porque não conheço outra forma de lidar com a dor de existir a não ser ignorar, ainda chove lá fora, ouço o barulho do céu chorando, choro por dentro porque sei que é inevitável, afinal há muito que o baú me espera e há muito anseio encontrá-lo, somente o medo me impediu até hoje, mas enfim é o momento. Passei o último degrau e estou olhando para ele, mas não é mais um baú, é toda uma existência repleta de quinquilharias tacanhas e também preciosas que se veem duplicadas  em um enorme espelho que reflete toda a minha existência, ele que durante minha estada sempre esteve ao meu lado, mesmo com a mediocridade de uma união imaginária, abro o baú e vejo que não há nada, apenas um lugar e uma voz que me chama, e eu sei que apenas esse chamamento é o que me resta, então fecho lentamente  os olhos e mergulho serenamente para dentro do baú, em posição fetal, encerro a vida levando comigo tudo o que eu e ele tínhamos vivido, o medo passou, outra mão talvez  cerre de vez o baú, mas agora somos um só ser, apenas uma efemeridade que esteve por aqui por um determinado tempo, clandestino instante de felicidade absoluta reina entre nós, só o silêncio nos acompanha, ser e coisa se fundem numa harmonia tranquila de quem nunca foi um ser e do que nunca foi apenas uma coisa.


NUNCA ACREDITEI


Sempre soube que terminaria assim, embora repetidamente tenhas  afirmado que  pessoas mudam, hipócrita mentira que usaste  como um camaleão se camuflando entre as variantes nuances de cores da vida,  eu sempre soube quem tu eras por dentro, mesmo assim não deixei de sentir a mágoa e a decepção, acho que no fundo dessa minha alma sulcada pensava que talvez pudesse ser especial para ti, nem sei por quê, se tenho inquietudes e sentimentos tão sorrateiros que nunca sei se são reais ou não, conservo fechadas as portas, qualquer descuido pode ser fatal e o perigo é sempre iminente, chove, troveja, aqui dentro de mim e lá fora também, conservei minha face um tanto bela, o mesmo não posso dizer de meu íntimo, esse está destroçado há tempos, aliás, acho que já nasceu assim,a pouca fé nas palavras das pessoas mais uma vez me provou verdadeira a  assertiva de que falam por falar, mas que no fundo, são só palavras inócuas, em vão, me assombra a facilidade com que anunciam o amor, falácia romântica e fingida, nem sabem o significado e a sua representação na vida do outro, mas convém pronunciá-la, nada melhor que fingir pra si mesmo, faz parte dessa anarquia institucionalizada por essa sociedade falida, danem-se todos, nem sei por que ainda penso nesses disparates que delineiam esse idiota gênero dito humano,até os irracionais entendem melhor o significado do amor, não digo que eu o saiba, estou longe de todas as certezas, não vejo sentido em viver numa organização social que parece um espetáculo circense em que as marionetes são movidas pelo o que se espera delas e não pelo que elas desejam, sou mais um jogral nesse mundo humano desumano, mais uma pedra do alicerce que rui a todo momento e ninguém percebe porque os contornos que o delineiam são tão sutis que se tornam imperceptíveis aos que estão nessa engrenagem conformadora, me embrulha por dentro ruminar os feitos do homem, todos buscam melhorar o interior e hipocritamente o dizem, os atos avaros são mais fortes e as palavras ficam no vácuo, num espaço ridículo entre o dizer e o fazer, não ligo para as frivolidades, eu sou frívola e meu entorno também o é, não espero humanidade da humanidade, o enunciado é sempre cheio de ambiguidades, dou ao mundo o meu próprio sentido: não ter sentido, comecei falando que eu já sabia o que ia acontecer, não sou vidente, sou descrente da decência humana, somos peças descartáveis, quando não servimos mais somos jogados no vão de todas as coisas desprovidas de sentido, nem mesmo a amizade consegue suportar essa efemeridade que é a vida em sociedade, um ermitão talvez seja menos solitário, se não o é também não está perdendo nada, eu sofro a cada segundo ao ver a sovinice fazer cada vez mais parte do gênero humano, mesquinhez de humanidade fique claro, eu primeiro o resto que se arrebente, me vejo no espelho e não vejo nada, deixei de existir, apenas uma nódoa reflete um pouquinho do resto que ainda me sobra como ser humano, fui corrompida, destruída, apenas o físico ainda me faz parte da raça humana, perdi em cada fracasso um pouco da minha essência e foram muitos os abortos que me tornaram insensível, mas mesmo assim me surpreendeste ao sentir a mágoa soube que ainda restara alguma coisa de humano em mim, garanto que por pouco tempo, nunca acreditei em tuas vãs palavras e infelizmente eu estava certa, gostaria de estar errada e poder rever tudo o que acho da espécie humana, ainda tentaste me iludir, mentindo sobre situações que visivelmente eu sabia não serem exatamente daquela forma, mas deixei que tua tentativa prosseguisse, queria ver até onde a hipocrisia iria te levar e assisti a tudo sorrindo, rindo da tacanhez das pessoas e do quanto são incapazes de serem verdadeiras, seguiu toda uma situação que  parecia satisfazer à falta de realidade, eu chorei  por mim,  pela falta de sinceridade e de amizade, a hipocrisia e a podridão colocaram um ponto final a qualquer ínfima possibilidade de ainda crer nas pessoas. Cerro mais esta etapa, não carrego mais mágoas, eu já sabia que ao final de todas as coisas humanas somente a sordidez permaneceria.

 




INUSITADO


Não pensei que terminaria assim, eu te abandonando, te amando ainda, teu silêncio que tanto me agradou foi o que causou nossa separação, olho pela janela do avião, as nuvens parecem aqueles quadros de areia fina que quando colocados de cabeça para baixo vão formando outras imagens, nunca as vi desse jeito, elas pareciam chorar como eu, a negritude invadiu minha alma de tal forma que quase não a vejo, somente a dor que sentia me lembrava que eu ainda estava viva, antes de embarcar uma última ligação, peço-lhe que não me deixe partir, ainda no aeroporto, nenhuma resposta, apenas um silêncio profundo e perturbador, pisei o tudo em que acreditava, o orgulho deu passagem, implorei em vão, tua intransigência era intransponível, há uma semana de nosso casamento e eu não o conhecia, em frente um do outro separados pela medida do tampo da mesa da cozinha, eu recém estava descobrindo o que se passava por detrás de todo aquele silêncio, por não dizer nada em contrário pensei estarmos em sintonia, aquela tarde foi aterradora, todas as palavras não ditas  foram então pronunciadas, um estranho surgiu diante de mim, e deste eu não gostava, perguntei se ele era assim ou se por alguma obscura razão ele se encontrava dessa forma, não, essa era a sua essência, estúpida e ciumenta, não tive tempo de desgostar, foi tudo muito repentino, apesar de não amar esse outro ser que agora se apresentava, não conseguia deixar de amar o outro que habitara até bem pouco tempo atrás esse mesmo corpo, difícil arrancar todo o sentimento, mesmo sabendo que o que eu sentia não era pela pessoa real,mas sim por uma representação, uma estranheza se instaurou em mim, entreguei-lhe a aliança e pedi que fizesse suas malas, levei-o até sua casa e virei as costas, sei de todos os meus limites e da minha incapacidade de ceder, restava matar agora todo o sentimento que em mim existia, a razão por um lado me dizia estar certa, o coração por outro me corroia, pensamentos e sensações mesclavam-se com um torpor estarrecedor, tinhas ciúmes de tudo, eu uma alma livre, não aceitava correntes nem amarras, não sei fingir, sei apenas ser o que sou, ao meu lado senta-se um homem com fones no ouvido, ainda bem não pode ouvir os lamentos de minha alma, o avião decola, o seu som é mais suave que o estardalhaço dos meus sentimentos, só podia estar chovendo, combina melhor com minha existência, e eu que pensei haver encontrado o sol, debocho de mim, da minha falta de realidade,  agora também não poderia ser  diferente, toda minha vida foi uma eterna noite de chuva e de tempestades, a imbecilidade tomou conta de mim e eu acreditei, acreditei que podia ser feliz e que podia agarrar a vida em minhas mãos, ironicamente nunca cri que fosse possível, o amor faz tornar o prófugo em concretude, idiotice minha,  todos os que amam são ignorantes, não sabem nada, pensam saber, somente eles podem ser felizes pois desconhecem outros horizontes, essa falta de visão é o que lhes permite sentirem-se satisfeitos e realizados, sou uma metamorfose, nunca escondi, o amanhã comigo é sempre incerto, essa mutabilidade foi uma questão mencionada, talvez a causa de todas as incertezas dele, um leve roçar do braço do homem com fones no meu braço, viro e fito seus olhos negros e profundos, há apenas um contorno do rosto, somente o olhar se destaca,  ele parece ler minha alma, ficamos olhos nos olhos por alguns segundos, um leve tremor me acode, desvio o olhar em direção à janela, procuro ver novamente as nuvens em forma de areias finas, não consigo, aqueles olhos ficaram impressos em minha retina, permaneço imóvel procurando ver as nuvens, sinto de novo um pequeno toque em meu braço, finjo não sentir, ele insiste, olho para ele, confusa com o gesto, seu rosto está bem próximo do meu, posso sentir  sua respiração, seus lábios agora estão colados ao meus, destino implacável, não sei o que o atraiu, não sei o que me atraiu, sem palavras, sem nomes e apresentações, beijávamo-nos docemente como se fosse algo natural e usual , nenhum de nós dois falava, acho que somente nossas almas trocaram informações, sei lá, talvez dois corações machucados tenham se encontrado naquele voo, permanecemos calados, abraçados, como se um apoiasse o outro, aterrissamos, peguei minha bagagem de mão, sai sem olhar para ele, senti seu olhar me acompanhar, ao tomar o táxi vi que ele estava ao meu lado, mas nada disse, abri a porta, entrei e parti, ainda trago aqui dentro de mim aquele momento inusitado de minha vida e em minha retina ainda estão impressos aqueles olhos negros de um desconhecido que me confortou e me reanimou em uma dia de total negritude, não sei quem é, nem desejo sabê-lo, só sei que naquele determinado tempo ele foi a minha completude, não precisamos falar, apenas deixamos que as sensações nos dominassem e nos fizessem felizes, quem sabe um dia o destino  nos coloque novamente juntos ou não, não importa, sei que naquele momento fomos um para o outro  tudo aquilo que precisávamos, dois desconhecidos que por uma estranha razão se deixaram  guiar pelos sentimentos que nenhuma explicação lógica conseguiria explicá-los, mas que a essência humana em sua total pureza, sem o pensamento do certo e do errado, permitiu fluir uma energia ainda para mim totalmente inexplicável e singular, sei a partir de então que sou capaz de abolir a racionalidade e ser apenas instintiva.
INCREDULIDADE

O passar dos anos trouxe consigo tantas sobrecargas que fez com que a intolerância tomasse conta de mim, coisas que já não possuem valor para mim são simplesmente insuportáveis, uma espécie de raiva e descaso por  determinados assuntos e comportamentos que socialmente estão tão bem organizados e que parecem não merecer meu desprezo nessa engrenagem conformista que delineia o modo de vida de uma só forma para todos, olhar essa parafernália toda me enoja, fico perplexa pela imbecilidade que elas representam no percurso da humanidade, gosto da dureza das rochas,  da correnteza das águas e da consistência da individualidade, vivo só por opção, representar não faz parte dos meus planos, num relacionamento há muito o que dissimular, me repugna o faz de conta, tenho medo de compromisso, como sou livre sei que não suporto tanta carga, nunca sei o que vou pensar ou sentir no amanhã, prefiro as relações inconstantes, não sei em que ponto de minha existência me tornei assim tão efêmera, sei o peso que me custa e o alívio que me traz, a fugacidade é uma marca de minha escassa vivência nesse mundo enquadrado em medidas tão exatas que minha inexatidão não tem espaço, dentro de mim há uma cerca viva que me protege e também me isola, só entra quem permito; embora, algumas vezes pequenas ameaças tenham tentado trilhar nesse espaço pouco percorrido, logo foram banidas, meu olhar salienta os defeitos e oculta as virtudes, acho que é uma espécie de auto defesa, expulsos os perigos estou a salvo de novo, tenho medo de mim não deles, sei que os amores mais cedo ou mais tarde apodrecem e como frutos maduros despencam no chão, prefiro não viver os sentimentos do que sofrer, fico só na espreita observando a idiotice do amor e a sua falsidade, nada é eterno, muito menos o amor.