INTRODUÇÃO
Com base na produção oral, esta pesquisa visa a analisar os elementos constitutivos, até hoje perpetuados, da identidade gaúcha através da produção oral do Rio Grande do Sul, em específico, do cancioneiro gaúcho cujas canções refletem a essência do povo rio-grandense, e a verificar de que forma esses elementos identitários foram reaproveitados pela literatura sulina, especialmente pela vertente regionalista.
Convém destacar que para se delimitar esse tema, fez-se necessária a adoção de determinados critérios. Em primeiro lugar, entendemos por produção oral popular todos os contares, os falares e os cantares do povo, privilegiando sobremaneira os cantos que caracterizam costumes, crenças e ditos populares. Em segundo lugar, selecionamos apenas as canções consideradas gaúchas, ou seja, aquelas que não são meras reproduções de músicas portuguesas ou manifestações culturais oriundas de outras regiões do Brasil. Portanto, diante desses critérios, adota-se como base estrutural deste trabalho o livro de Augusto Meyer, O cancioneiro gaúcho, pelo fato de o autor haver considerado esses aspectos em sua obra.
A obrigatoriedade de estabelecer determinadas definições deve-se ao fato de, ao mesmo tempo, em que se distingue a individualidade da literatura regional em relação à nacional, considerando suas peculiaridades e seus contextos histórico-sociais, embora entendendo a literatura gaúcha como parte da nacional, sente-se a necessidade de dentro do próprio regional, aqui compreendido como espaço geográfico, definir o que realmente caracteriza o tipo gaúcho. Para endossar essa proposta, recorre-se s às palavras de Regina Zilberman quando esta afirma que a um livro voltado para a literatura rio-grandense é necessário definir-lhe o tema: Como a produção sulina faz parte da literatura nacional, é prudente esclarecer onde se situa a individualidade daquela porção, para justificar o tratamento que a singulariza, sem recorrer ao separatismo ou invocar teses regionalistas, soluções, ambas, limitadoras.
A compilação dos textos que compõem a nossa literatura oral iniciou com o alemão Carlos Von Koseritz que, a pedido de Sílvio Romero, passou a publicar quadrinhas anônimas recolhidas da produção popular no jornal Gazeta de Porto Alegre, visando a registrar as primeiras manifestações poéticas da história da literatura gaúcha. Outros estudiosos, a exemplo de Koseritz, continuaram a coletar essas composições e a publicá-las em revistas, almanaques, periódicos ou, inclusive, em obras específicas. Entre outros, citamos: Graciano Azambuja, João Cezimbra, Walter Spalding, Apolinário Porto Alegre, João Simões Lopes Neto, Augusto Meyer e Sílvio Romero.
Em 1910, é publicado o Cancioneiro guasca, de João Simões Lopes Neto, que apresenta a sua coleta das composições divididas em capítulos intitulados: antigas danças; quadras; poemetos; trovas; poesias históricas; desafios e modernas.Em 1935, em comemoração ao Centenário da Revolução Farroupilha, é editado o Cancioneiro da Revolução de 1835, de Apolinário Porto Alegre, cuja temática de guerra é de fundamental importância documental.Em 1952, o Cancioneiro gaúcho, de Augusto Meyer, é publicado. O autor apropriando-se de critérios seletivos quanto à originalidade dos textos, descartando os de origem portuguesa (transcrições puras) e os de outras regiões do Brasil, apresenta-nos textos, cuja linguagem acentuadamente localista, destaca a vida campeira como símbolo positivo de modo de viver. Outras obras importantes fazem parte da revisão literária necessária para essa pesquisa e encontram-se refletidas nas referências bibliográficas ao término deste estudo. Destacam-se apenas essas três por serem consideradas fundamentais para o trabalho em questão: o cancioneiro gaúcho como fonte do sistema literário sul-rio-grandense.
A configuração da imagem do gaúcho, como é concebida atualmente, é formada por vários elementos: alguns de origem popular, como a indumentária e os modos de falar e de agir; outros, de natureza erudita como a figura mítica do centauro, além das condições sócio-econômico-histórico-políticas.
A presente pesquisa orienta-se a partir das seguintes questões norteadoras: Qual a origem do cancioneiro gaúcho e de que forma se relaciona com a literatura oral e popular? Qual é a relação da história com a literatura na criação do mito do gaúcho? Qual o papel da história literária rio-grandense na criação na constituição do termo “gaúcho” tal como é concebido atualmente? De que forma os elementos constitutivos da identidade gaúcha foram transpostos do cancioneiro gaúcho para a literatura sul-rio-grandense?
A realização desta pesquisa necessita não apenas uma análise da bibliografia existente sobre o tema do cancioneiro gaúcho, como também uma revisão acerca da teoria da história da literatura, da relação entre história e literatura, da formação da história literária rio-grandense e de toda a fortuna crítica publicada a respeito do assunto.
Além de resgatar o valor histórico e cultural do cancioneiro gaúcho como instrumento de construção da memória coletiva, esta pesquisa objetiva, ainda que de maneira modesta, reescrever um capítulo da história da nossa literatura, detectando as linhas de pensamento ideológico, assumidas pelos escritores rio-grandenses ao comporem a sua história da literatura. O resgate do cancioneiro gaúcho, como fonte do nosso sistema literário, visa a identificar os elementos selecionados para a construção da identidade gaúcha e também a analisar de que forma a transposição desses elementos, retirados da produção oral, foi utilizada na formação da literatura gaúcha e na escrita da nossa história literária.
A metodologia utilizada para dar conta deste estudo está assim estruturada: pesquisa bibliográfica (histórica e analítica); análise dos livros do Cancioneiro gaúcho: Cancioneiro guasca, de Simões Lopes Neto, O cancioneiro da revolução de 1835, de Apolinário Porto Alegre e o Cancioneiro Gaúcho, de Augusto Meyer; estudo das matrizes teóricas que ajudaram a definir alguns conceitos fundamentais como os existentes na relação entre história e história da literatura e do próprio conceito de literatura regional; revisão da bibliografia teórica acerca da escrita de histórias da literatura; - leitura de obras pertencentes à literatura gauchesca e à literatura oral de maneira geral; -revisão da fortuna crítica sobre o cancioneiro gaúcho; - identificação dos elementos constitutivos da identidade gaúcha; - reconstrução, a partir desses dados, das diferentes expressões e usos da cultura transmitidos pela literatura oral à literatura escrita sulina; - identificação do regional; - análise crítica dos cancioneiros gaúchos; análise da representação do gaúcho nas obras O Corsário (Caldre e Fião), O Vaqueano (Apolinário Porto Alegre), Os Farrapos (Oliveira Belo) e nos contos de Simões Lopes Neto: O Negro Bonifácio e Trezentas Onças; e a elaboração de conclusões acerca do tema: o cancioneiro gaúcho como fonte do sistema literário sulino.
O capítulo I dessa dissertação aborda as relações entre literatura oral e popular e o cancioneiro gaúcho, definindo conceitos como tradição e folclore e apresentando a origem das canções trovadorescas desde seu surgimento até seu redimensionamento dentro da cultura gaúcha. O capítulo II apresenta as confluências entre literatura e história e parte do primeiro caudilho rio-grandense – Sepé Tiaraju – origem do mito no Rio Grande do Sul para constituir os elementos formadores da identidade gaúcha até a consolidação do mito. O capítulo III resgata a história literária rio-grandense desde a sua produção oral até o início do regionalismo, destacando a questão ideológica que permeia os conceitos de região e de identidade. O capítulo IV trata de estabelecer a transposição dos elementos constitutivos do mito do gaúcho do cancioneiro popular para a literatura sul-rio-grandense, enfatizando a importância da Sociedade Partenon Literário para a vertente regionalista.
CAPÍTULO I
Literatura oral e popular: o cancioneiro gaúcho
1.1 Tradição e folclore
O povo recria a coisas infatigavelmente (aceitação coletiva) e só aceita os fatos com a sua função atual e não como sobra do passado. Assim, a tradição não resulta de um passado milenário, da mesma forma que de fato contemporâneo, importa não a velhice, mas a aceitação atual. (grifo nosso)
Renato Almeida
No Folclore nascemos, vivemos e morremos. É o clima natural, orgânico, diário, familiar. É a ciência do povo. Saber mais do que o povo é privilégio do Espírito Santo. (grifo nosso)
Luís da Câmara Cascudo
Desde o século XIX, primeiramente na Europa e, logo após, na América, a história dos estudos folclóricos é bastante conhecida. Esses estudos se constituíram e se desenvolveram junto com a história cultural e política da época. Com o Romantismo e o processo de afirmação das nações ocidentais surgiu a necessidade de incorporar a linguagem popular na cultura letrada. No Brasil, as manifestações folclóricas contribuíram para fundamentar a historicidade da literatura brasileira e sulina.
O país, através de escritores e críticos literários, propagou via literatura a cultura popular brasileira. Em 1888, as publicações:
Estudos sobre a poesia popular no Brasil e
História da Literatura Brasileira, ambas de Sílvio Romero, foram marcos iniciais do estudo folclórico, de forma epistemológica. Luís da Câmara Cascudo considerou as coletâneas
Cantos (1883) e
Contos Populares do Brasil (1885), ambas de Silvio Romero, publicadas um pouco antes das obras anteriormente citadas, como
primeiro documento da literatura oral brasileira.
Poucos foram os intelectuais brasileiros que consideraram os acentos da poesia popular no século XX, entre eles destaca-se, segundo Silvio Romero, Mello de Morais Filho, único a acompanhá-lo no estudo popular cultural brasileiro. Gilberto Freyre, conforme o autor, com a revolução modernista, incorporou algumas contribuições, embora se tenha detido pouco na literatura oral, destacando mais a questão da descrição e da análise de costumes e as relações sócio-culturais. Em 1934, Luís da Câmara Cascudo encorajado e orientado por Mário de Andrade contribui com a publicação de valiosos trabalhos acerca do folclore no país, suprindo a lacuna deixada pelos escritores brasileiros.
A produção oral como sinônimo de aporte cultural de uma determinada região está fundada na tradição. É a transmissão de geração em geração das formas de pensar, de fazer ou de agir de um apurado grupo de indivíduos, através da transmissão oral ou até mesmo do exemplo e da imitação, incluindo hábitos e comportamentos herdados, que constroem a identidade cultural de uma determinada comunidade. Segundo Aurélio Buarque de Holanda, a palavra tradição remete-nos ao ato de entregar e dentre as cinco definições da palavra tradição o aspecto predominante é o da transmissão como forma de propagação de uma memória cultural de uma determinada região, através da imitação e da oralidade.
Thomas Chapais, de acordo com Jean Du Berger, defende que a língua é fator fundamental para preservação das tradições. No primeiro Congresso da Língua Francesa no Canadá, realizado em Quebec (1912), o pesquisador em um importante discurso aponta a importância da língua como fator primordial na defesa da tradição. Thomas Chapais considera que a conservação dos costumes através das tradições é reconhecida pela literatura nacional pelo fato de a mesma definir a identidade coletiva do Canadá francês. Conforme Du Berger, a tradição possui um dinamismo que une as gerações que se sucedem, dando sentido ao presente ao referir-se ao passado, ou seja, há uma certa evolução no processo da memória coletiva. Para ilustrar, o referido autor reporta-se a Lionel Groulx em seu romance
L’appel de la race (1922), citando o herói Jules de Lantagnac, que sobre a tumba de seus ancestrais, acaba assumindo sua alma de francês, afirmando que de uma geração para outra é necessário que haja elos de ligação que estabelecem sentido entre as gerações, através de um processo de continuidade de valores que são perpetuados através da tradição, mas que apresentam uma certa evolução na sua trajetória. A partir dessa idéia de haver uma evolução na tradição, o abade Lionel Groulx
., propõe uma definição, com base na etimologia, destacando os dinamismos do conceito. Assim, para o historiador a tradição é dinâmica, portanto não é algo que retém, mas sim um projeto que promove o avanço de um povo no sentido do rumo de sua própria história.
Ao falar-se de tradição e folclore em relação ao Rio Grande do Sul, a primeira imagem que vem à mente é a da campanha e, conseqüentemente, a dos usos e costumes da vida campeira. Para Lionel Groulx, a primeira vocação da humanidade é a rural. Por entender-se que a constante gaúcha tem a mesma etimologia proposta pelo historiador, adota-se então esta premissa como ponto de partida para o presente estudo. Tal como Groulx, acredita-se que os povos essencialmente rurais sejam mais arraigados às suas tradições, permitindo que esses possam ultrapassar determinadas crises identitárias provindas do progresso impingido.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1696. “Tradição. [do lat. traditione] S. F. 1. Ato de transmitir ou entregar. 2. transmissão oral de lendas, fatos, etc., de idade em idade, geração em geração. 3. transmissão de valores espirituais através de gerações. 4. conhecimento ou prática resultante de transmissão oral ou de hábitos inveterados. 5. recordação, memória.” CHAPAIS, Thomas apud BERGER, Jean Du. América francesa: introdução à cultura quebequense. Rio Grande: FURG, 1999. p 196. “Tradição vem da palavra latina “tradere”, que quer dizer dar, liberar, remeter. Fazer tradição de uma coisa é liberá-la, remetê-la a alguém. As tradições são as coisas que uma geração lega à geração seguinte. E eis que, de um só golpe, nos faz compreender quanta importância elas têm, qual lugar elas ocupam na vida de uma nação. As tradições são a cadeia que liga o presente ao passado. Por elas, as sociedades sentem que não são um acidente nascido por acaso, em um momento fortuito do tempo, mas que são ao contrário um produto de um longo esforço e de uma lenta elaboração.” GROULX, Lionel apud BERGER, Jean Du. América francesa: introdução à cultura quebequense. Rio Grande: FURG, 1999. P. 207. “Tradição quer dizer entrega, transmissão. E desde que se trata aqui da transmissão de um legado moral e de uma transmissão por um organismo vivo, em constante evolução, forçosamente a realidade de um legado moral que se pode supor idêntico a si mesmo em seu interior, mas que, de geração em geração, não deixa de se modificar, de se enriquecer de elementos novos. Falando claramente, quem diz tradição, diz continuidade, avanço constante, enriquecimento perpétuo; e, por isto mesmo, tradição só poderia ser concebida como a tradição viva. No sentido mais geral da palavra, o que seria além dos caracteres, das linhas mestras de uma história? Diz-se exatamente: são as “constantes” de um povo, suas linhas de força.”